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quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Jóias de Família - obra para o vestibular UFMG e Provão 3º ano


Jóias de Família

Obra: Jóias de Família
Autor: Zulmira Ribeiro Tavares
Gênero: Novela
Estética: Literatura Contemporânea – Pós - Modernismo


O falso brilhante
                         
“...pois os que sofrem a ação da mentira) tanto quanto os que as inventam) mentem também para si mesmos e defendem-se dos efeitos devastadores da verdade inoculando em si próprios) regularmente) pequenas doses de ilusão”. (p.21)

Enredo

Zulmira Ribeiro Tavares nasceu em São Paulo, em 1930. Escreveu um livro de ensaio, Termos de comparação, recebendo, em 1974, o prêmio de revelação APCA. Depois, publicou os romances O Japonês de olhos redondos (1982), O nome do bispo (1985) - com o qual recebeu o prêmio Mercedez-Benz de Literatura ­ O mandrll (1988), Jóias de família (1990), Café pequeno (1995) e Cortejo em abril (1998). Segundo o crítico Roberto Schwartz, Zulmira é detentora de uma “prosa admirável, racional, audaciosa e sem preconceitos, alimentada de liberdade moderna, mas nem por isto senhora de alguma verdade. (...) Trata-se de constatar que esta prosa é escalada em disciplina, pelo estudo e pela autocrítica em toda linha". (Schwartz, 1985:184). Com efeito, o estilo objetivo e racionalista dessa autora, que não tem formação universitária, resvala pelo ensaio e nos oferece, de forma humorística, uma sátira social do discreto charme da burguesia paulista.

A jóia e o joio

Jóias de família é um romance breve, que pode ser visto como pequena metáfora da falência de uma tradicional família paulistana. Entre o joio e o trigo, Zulmira apontará o joio, que se disfarça em jóia. A narrativa não é dividida em capítulos, mas em sete blocos. O enredo do romance é simples: no nono andar de um prédio no Itaim-Bibi, em São Paulo, mora a enrugada, seca, mas empertigada Maria Bráulia Munhoz, viúva do juiz Munhoz, falecido há tempos. Também há anos, Bráulia tem a companhia da empregada Maria Preta, que serve a esta família desde a morte de Maria Francisca, a "Chiquinha", mãe e Bráulia. Essa família próspera e tradicional enriqueceu-se com a indústria de tecidos, em São Paulo. O único herdeiro da viúva é seu sobrinho­ secretário, Julião, verdadeiro parasita que, em vez de seguir a carreira no curso de comunicação, vive dos aluguéis das propriedades de sua tia. O objetivo de Julião (e de sua namorada Jurema) era o de conseguir capital para investir em jogos eletrônicos clandestinos. A referência ao vídeo-pôquer indica que a história se passa em tempo contemporâneo. A intriga da narrativa, feita na terceira pessoa, é acionada a partir da revelação que Julião faz à tia de que o rubi-sangue-de-pombo, a mais importante e valiosa jóia daquela família, era falso. Maria Bráulia não acredita na avaliação que o joalheiro Benedito Moreira Zanni fez daquela jóia, presente de noivado de seu marido Munhoz. A voz de Maria Bráulia buscava manter um controle, como se fosse" desossada e guardada em formal". O rubi era de quase dois quilates e viera da região de Ratnapura, no Ceilão, hoje Sri Lanka.
Maria Bráulia alega estar com enxaqueca e Juliào a deixa, pois teme mais as enxaquecas da tia do que as cotações da bolsa de valores. Através da técnica do flash-back, o leitor começa a se inteirar de fatos do passado dessa família. Munhoz não era propriamente rico, mas era um homem de bem. Dera o rubi à noiva, mas logo depois o pede de volta, pois achava que seria mais prudente guardá-lo num cofre, por ser uma jóia rara, adquirida de um comerciante espanhol. Munhoz providenciaria uma cópia da jóia. Naquela noite, mal beijara a noiva; era um respeitador - como pensara Maria Bráulia. Na viagem de lua-de-mel, na Suíça, ela perde o anel de rubi, mas acha que era o falso. Na volta, constata que era verdadeiro o anel que perdera. A partir de então, usa o falso, fingindo que era o verdadeiro. Na verdade, nunca houvera dois rubis, pois o juiz inventara toda aquela história. Bráulia, depois de um certo tempo,começou a perceber que a natureza daquela pedra era a natureza de seu marido; seu "respeitador" marido tinha um caso com o secretário-fisioterapeuta: "Uma ocasião, tempos depois do casamento, em um dia em que o marido trabalhava em casa, ao abrir a porta do escritório o surpreendera com o seu secretário particular, entretidos ambos numa espécie de ginástica rítmica conjunta, de natureza obscura". (p.20)
O juiz Munhoz sempre adquiria jóias com Mareei de Souza Armand, com quem contava com a discrição, pois presenteava o amante-secretário. Mareei passa a fazer parte da intimidade da família e Maria Bráulia sente-se atraída por ele. O narrador, irônico, comenta que começa a crepitar a cortina de suas noites de breu... A amizade entre Mareei e Maria Bráulia torna-se um caso de adultério. Os pontos dos encontros eram sempre alterados. Mareei presenteia a amante com um rubi não facetado, um "cabochão", termo originado do francês cabochon, prego de cabeça grande.
Um derrame entorta a boca de Munhoz, que passa o resto de sua vida em dúvida entre "o dolo e o decoro", isto é, corroído por remorsos, mas ainda buscando preservar as aparências. (Teria suspeitas do adultério da esposa? Ela saberia de seu homossexualismo?). Munhoz morre e sua última palavra foi uma expressão jurídica, em latim: in dubio pro reo, ou seja, em dúvida, o réu é favorecido. Prosseguem, discretos, os encontros entre os amantes. Um dia, Mareei parte para a Europa, onde morre num restaurante nos arredores de Paris, cujo nome era "Santinha de Sarnouco", (que evoca a conhecida expressão santinha do pau-oco) e que se referia a uma suposta antepassada beata portuguesa. Mareei dizia que era descendente de uma família lusa muito católica, com proeminentes padres e até essa beata. A velhice chega para Maria Bráulia, que não reside mais na mansão da Eugênio de Lima, mas agora no apartamento. O sobrinho - que desconhece esse passado pecaminoso da tia - era um dos poucos que visitava Bráulia e esta achava Jurema "gentinha", calçando sandálias vulgares. Outra visita era a de Benedita ou Bene, uma sobrinha de Maria Preta, que tinha o bumbum saliente. Ela fazia um cursinho para biblioteconormia e iria trabalhar para Maria Altina, irmã de Bráulia. A narrativa mescla passado com presente, não fluindo, portanto, na forma linear e cronológica. Importa menos a ação do que a descrição irônica e a análise satírica que o narrador faz das personagens e situações.

Foco narrativo
      A narrativa é feita na terceira pessoa, mas o narrador em várias situações, funde-se com a personagem, ocorrendo a técnica do discurso indireto livre. Por exemplo, na p.14, vê-se que o ponto de vista é e Julião:
Julião permanece um instante em silêncio no meio da sala. Estende a mão e se curva um pouco para beijar a tia no rosto. Apesar de tudo, é um sobrinho-secretário modelo. Não insiste quando sabe que não é hora. Aquele rubi sangue-de-pombo, sangue da puta de pomba que o pariu isso sim, botou a perder.

Já na p.47, a voz da narrativa acaba por se confundir com a do juiz Munhoz:
As jóias que ele comprava para Maria Bráulia para comemorar alguma data naturalmente não poderiam estar à altura das que ela já tinha, ela tinha, ela mesma depois do triste episódio do rubi sangue-de-pombo fora a primeira a desestimular novas extravagâncias, ainda assim, aquele alfinete de prata e malaquita, o que você acha? Quanto à cigarreira de ouro com tampo esmaltado, mais uma vez eu lhe peço, etc. etc...

Às vezes como acontece na p.52, num episódio entre Maria Bráulia e Mareei, o diálogo é implícito, inserido entre parênteses, ou o pensamento do personagem é inserido nos parênteses:
Sempre gostei do jeito piedoso de sua família. Mas nem por isso aconselho você a correr a toda hora a seu confessor para pô-lo a par de sua vida como se o confessionário fosse a Agência acional (esse homem blasfema). Pode parecer que cometo um sacrilégio ao falar assim. Você está errada, sorria! (Meu Jesus, guiai-me).
Tempo
Jóias de família desenvolve-se em dois níveis temporais: o presente, envolvendo Bráulia, Julião, Maria Preta e Benedita e com referências a Jurema e Bento, amigo de Julião. Esse tempo ente é contemporâneo, contrastando com o passado, transcorrido na década de 30, época Estado Novo, quando o Rio de Janeiro era a capital federal. Há referências ao governo de Júlio Vargas, às "galinhas verdes" (partidários Integralismo). O relacionamento entre Munhoz Bráulia, desde o noivado, é mediado pelo rubi sangue-de-pombo. No tempo presente, quando - o vem fazer a revelação de que o rubi era o, a tia já sabia disso. Há uma passagem significativa, na p.31, em que o tempo se revela de forma fragmentária e metonímica, com a protagonista fazendo uma revisão de seu passado:
Quem se não a vida, só a vida, no seu caráter mais geral e no mais particular (o secretário­ fisioterapeuta, sempre ele); a vida, só a vida, como um detetive paciente e bonacheirão, a tinha feito com o passar dos anos percorrer de volta o caminho das festas do período de noiva­ do; de volta, sempre de volta ao sulco profundo no mar, do Capitão Polônio avançando para a Europa e do Alcântara retrocedendo para o Brasil; a fizera esbarrar de novo e sempre na mistura de confusão e teimosia do secretário-fisioterapeuta, a fizera observar (maravilhada, tornara-se enfim uma observadora) a lenta evolução de exercícios leves e apurados de ativação sangüínea - e por fim lhe havia dado a chave da intrigante natureza da pedra: e a natureza da pedra era a natureza do juiz.

Nesse trecho, há referência ao navio Capitão Polônio, que conduziu o casal em lua-de-mel para a Europa, assim como o navio Alcântara os conduziu de novo ao Brasil. O homossexualismo do marido é evocado e a imagem do detetive como metáfora da vida retomará mais duas vezes (p.31 e p.73). Sugere-se, pela recorrência da imagem, que houve um tempo em que um detetive fora contratado pelo juiz para seguir Maria e seus encontros com Marcel.
Espaço
A família de Maria Bráulia era uma das mais prósperas e antigas de São Paulo. Nessa cidade, em um ambiente tipicamente burguês, transcorre a narrativa. No passado, o espaço marcante é a mansão na rua Eugênio de Lima; no presente, a vida represada da viúva se passa no nono andar de um apartamento no bairro Itaim-Bibi. É um apartamento pequeno, mas confortável, suficiente para segregar classes diferentes, como nesse trecho da p.65, em que há referência aos ambientes da patroa e empregada:

─ Baixa a voz, baixa a voz.
─ Não se ouve nada do outro lado. Você mes­ ma não disse que só passa barulho de latrina e de chuveiro?

Personagens
Maria Bráulla é a velha empertigada de família rica e tradicional. Quando jovem, era bela e "tontintie", muito ingênua a ponto de casar­se sem conhecer as preferências sexuais do marido. Acostuma-se ao jogo hipócrita, torna-se cúmplice das mentiras. Depois de uma fase de expectativa e angústia, tornou-se amante de Marcel. Na velhice, tem a ajuda de Julião, sobrinho de seu falecido esposo e a quem havia prometido doar o rubi sangue-de-pombo, após cinco anos de serviço.
Munhoz é o juiz pedante, hipócrita, homossexual. Admirava o boxe, para contemplar os atletas musculosos. Vive na penumbra, para não chamar a atenção sobre si. Sabe representar a comédia social. É falso como a pedra que dera à sua noiva. Depois do derrame, vive corroído de remorsos.
Julião é o sobrinho parasita, inocente em relação às falsidades de seus tios. É interesseiro, como sua namorada Jurema. Tem um amigo chamado Bento.
Mareei é descendente de franceses e portugueses. Joalheiro, parecia-se com a rainha Vitória. Orgulhava-se de pertencer a uma família de tradição católica. Também é assinalado pela hipocrisia. O "cambochão" é a jóia que o liga à amante Bráulia.
O secretário-fisioterapeuta, cujo nome não é mencionado, é o amante do juiz. Nunca conseguia terminar o curso de Direito e nem se sabe se concluiu o de fisioterapia... Após a morte de Munhoz, Maria Bráulia dá ao secretário um par de brincos de brilhantes e pede para que ele suma de sua vida.
Maria Preta é a antiga empregada naquela família. Seu nome verdadeiro era Maria Firmina. Como havia outras pessoas na família com o nome de Maria, ela recebe a alcunha de Maria Preta. Ela acostumara-se à patroa e até impregna-se com preconceitos e fala como ela... Mostra-se digna quando é suspeita do sumiço do rubi, afirmando que "o que a mão não leva, a casa acha".
Benedita, embora apareça pouco, é uma personagem divertida e interessante do romance. É afilhada e sobrinha-neta de Maria Preta. Antes, era magricela. Depois, encorpou-se. Tem a pele cor de caramelo, mora em Santos, mas evita freqüentar a praia, o que faz com que Bráulia lhe pergunte se ela desejava ficar branca. Não gosta de seu nome, que lembra pessoa humilde. Prefere ser chamada de Bene. Quer estudar biblioteconomia ou ser cabeleireira. Não quer ser doméstica e muito menos ficar naquela família, de quem sua tia parece orgulhar-se. Nesta passagem, da p.64, tem-se uma visão de Benedita a respeito da família de Bráulia:

- Mas que velhinha mais safada, mais nojenta essa d.Braulia heim? Enrugada, seca e pinta­ da daquele jeito parece um mico de circo! E como empina o esqueleto quando fala! Já que é tão perguntadeira, por que não pergunta para a caçula de d.Altina que passa a vida se torrando na piscina se quer ficar preta? Nojenta! Pensa que é o quê?
Símbolos e metáforas
Já na capa da primeira edição de Jóias de família vê-se o perfil de um cisne e a foto da rainha Vitória. No romance, o cisne é um ornamento de cristal - o cisne de Murano - que enfeita a mesa da residência de Maria Bráulia. Esse ornato atinge o grau de símbolo, representando os tempos de fartura da família patriarcal paulista, como se lê na p.17: "... do cisne de Murano no centro, deslizando tão velozmente através do muitos anos de fartura vividos por Maria 8ráulia Munhoz, com o majestoso porte refletindo-se na superfície polida do lago de espelho, que nem parece sair do lugar".
Murano é uma ilha de Veneza. A partir de 1281, tomou-se célebre pelas peças de luxo de seus vidros como cristal de rocha transparente. Mais adiante, na narrativa, o cisne de Murano é associado ao próprio juiz Munhoz:

Sempre a mesa redonda com o pequeno lago polido no centro (habitado por uma única e solitária ave de indiscutível dignidade e cujo perfil lhe lembrava vagamente o do próprio juiz ao ler os jornais da manhã após o café: a cabeça sem descair, o peito inflado, o nariz afilado e grande projetando-se entre as manchetes do dia erguidas à altura dos olhos). (p.26)

No epílogo do romance, o cisne reaparece, com sua cabeça erguida, enquanto outras rolaram (fora da vida e nos travesseiros). Aqui, sua imagem é ambígua, pois sinaliza a vida e a morte, o belo e o grotesco:
A madrugada chega. As cortinas estão afastadas e de fora avança a sua luz branquicenta descendo na sala. Empresta ao cisne de Murano a qualidade macia de que é de carne e de penas ao mesmo tempo que lhe rouba a aparência; tão descorado se acha quanto um frango de pescoço torcido sem pinga de sangue. Estarrece por afrontar as leis da natureza e os costumes dos homens. Um defuntinho de pé. (p.81)

Conforme a simbologia, o cisne é um ser ambíguo, é hermafrodita, macho e fêmea, seu pescoço é fálico, mas seu corpo evoca a feminilidade. Sua imagem prende-se à realização suprema de um desejo, seu canto é símbolo do prazer que morre em si mesmo. De um lado, o cisne pode ser relacionado ao juiz Munhoz; de outro, é Maria Bráulia - agora transformada em caco de gente, frango de pescoço torcido. O cisne é uma ave simbólica que se projeta em outras aves, como o pombo, ligado ao anel, e ao pavão, metáfora do vaidoso juiz. O cisne é metáfora da cristalização de uma classe social a simular uma estabilidade num lago de falsidade. Seu pescoço fálico é uma espécie de cabochão grotesco. Seu canto é de vidro frágil, que pode se espatifar a qualquer instante.
O retrato da rainha Vitória é associado ao rosto de Mareei de Souza Armand. Essa semelhança foi apontada, seguida por um risinho irônico, pelo juiz Munhoz, quando consultava um livro grosso. Mais tarde, já na intimidade de um quarto, Maria Bráulia constata a semelhança:

Quando o joalheiro saía com os cabelos molha­ dos de suas abluções naquele segundo andar de um sobrado afastado, ela era obrigada, com certo embaraço, a reconhecer e mais uma vez admirar-se da justeza da comparação. Ele, agastado com o ligeiro recuo dela, a olhava na defensiva, de soslaio. A parecença então se completava: como uma remota maldição, uma praga rogada do fundo do passado pelo Munhoz e que inesperadamente se realizava diante de seus olhos ainda que por breve instante; suficiente todavia para impedi-la, naquela tarde, de saborear das alegrias mais íntimas e merecidas, chegar ao fim dos seus arroubos. (p.74)

Sabe-se que a rainha Vitória (1819-1901) teve um longo reinado e tornou-se símbolo da própria monarquia, devido ao puritanismo, austeridade e agudo senso de dever. Com tenacidade férrea e obstinação, ela esmerou-se no culto das virtudes domésticas. O personagem Marcel, prestativo e leal, com sua suposta nobreza clerical e gaulesa, traz no rosto a estampa de uma virtude - que é negada por seu comportamento, seu ostensivo cabochão:
Depois, com as mãos sempre cruzadas na frente pressionara significativamente aquela região que mais tarde ficou conhecida de Maria Bráulia como o 'cofre de Marcel', o 'lugar secreto' de Marcel, o 'estojo de Marcel', bem ali embaixo onde começava o par de pernas robustas abrindo-se ligeiramente, vestidas de linho claro - e completara - essa peça aqui guardada também é sua, inteiramente sua, toda sua. Dissera então a palavra com uma voz irreconhecível para Maria Bráulia e, exatamente como o Munhoz sempre havia feito para ilustração da mulher, a traduzira logo em seguida, pela segunda vez naquela tarde, já com a entonação habitual, bem-humorada e didática: prego de cabeça grande. (p.79)

Por essa passagem, vê-se que também a caso, o rubi cabochão, apresenta flutuante significação ao longo da narrativa. As jóias de família podem significar educação, refinamento, etiqueta, comportamento grã-fino, como Maria Preta explica a Benedita: "- E essas coisas de modos, de educação que eu quero passar para você, essas coisas então como já dizia d.Chiquinha, tudo isso são também jóias de família. Esses ensinamentos a gente herda, vêm da mãe e do pai para os filhos." (p.69)
De forma humorística, Benedita, bem antes de o narrador nos revelar outra significação de cabochão, exclamou:

- Nominho do cacete!
-esse?
- Cabochão. (p.69)

O rubi sangue-de-pombo, como já foi dito, imita a natureza do juiz. Também Julião é associado a gemas compostas, sendo dois em um, pois é "padecente enquanto sobrinho e padecente enquanto secretário"; as pedras compostas de duas partes ou doublets relacionam-se também com Maria Bráulia, que exibe dois rostos: um é pouco visto por terceiros; o outro é o rosto social, o da encenação. O rubi não facetado, que apresenta uma inclusão, metaforiza a relação adulterina entre Mareei e Bráulia:
A inclusão é uma imperfeição, uma impureza da gema: pode ser um pequeno canal, uma bolha, uma parte de outro mineral, como rutilo. Mas veja você, Braulinha (quando a sós suas relações já admitiam o diminutivo), nos rubis isso não quer dizer perda de qualidade, pelo contrário, é uma garantia, uma prova de legitimidade da gema. (...) Este rubi quando lapidado vai ter dentro uma linda estrela. Marcel Armand fez uma pausa, olhou bem Maria Bráulia nos olhos e continuou: - Agora Braulinha, o seu casamento é um pouco como esse rubi. Você sabe e eu também sei como ele é. Tem dentro dele uma pequena inclusão (o secretário-fisioterapeuta) - deduziu Maria Bráulia extasiada), eu sei e você sabe qual é (ele! ele!). Vamos então aproveitar essa inclusão para produzir com ela um bonito efeito-estrela (meu Deus!). (p.52)

A inclusão de Mareei na vida amorosa de Bráulia é esse efeito-estrela. Aliás, o casamento de Maria Bráulia com Munhoz poderia ser anulado segundo o Código Canônico, que prevê o "erro essencial de pessoa", já que o "respeitador" marido era mais chegado aos exercícios de fisioterapia... Ao longo do texto de Zulmira Ribeiro Tavares, o leitor se depara com palavras como teatro, peça, farsa, máscara, representação, cópia, que remetem para a hipocrisia nas relações sociais. A hipocrisia faz parte do cotidiano. Um bom episódio que ratifica isso é a forma como os pais de Maria Bráulia olham para a imitação da jóia com respeito ainda maior com que na véspera haviam olhado para a jóia original, na p.24. A comédia humana não se restringe apenas às ações familiares e amorosas. O próprio Presidente da República existe enquanto farsa, como se vê nesse trecho em que se faz referência a Getúlio e ao Estado Novo:
Quando ia ao Rio, gostava das comediazinhas cantadas que caçoavam do Presidente. Entrava saracoteando no palco um baixinho com a barriga empinada e o charuto no canto da boca, a platéia vinha abaixo de tanto riso; no camarote oficial outro baixinho com a barriga empinada e o charuto na boca ajudava a platéia a vir abaixo de tanto riso. O Munhoz olhava para o palco e para o camarote. A casa inteira à cunha olhava para o palco e para o camarote; o baixinho cantava e se agitava para o baixinho que ria e aplaudia. Era preciso dar corda como num realejo à Capital do País, ao País; e se dava. (p.55)

O teatro é também usado como metáfora quando o narrador faz referência ao verdadeiro (?) rosto de Maria Bráulia: "No espelho resta então alguma coisa tão esvaziada e quieta como a fachada de um teatro às escuras". (p.42)
Os gestos rotineiros nos jantares também têm o alcance de uma representação - tudo, enfim, é fingimento:

E havia finalmente a cerimônia breve e cúmplice da pontinha dos dedos aflorando rapidamente a superfície da água perfumada dos finger-bowls gêmeos, numa demonstração ostensiva sobre a natureza fingida da operação (quanto ao asseio que proporcionava) mas verdadeira (quanto à necessidade de asseio que proclamava). (p.54)

Esse jogo de ambigüidade entre o verdadeiro e o falso, entre o ser e o parecer situa-se no nível da linguagem, pontuando o relacionamento entre Maria Preta e a família Munhoz, como a passagem exemplifica: "Maria Preta é como se fosse da família. Em algumas circunstâncias isso quer dizer exatamente o que enuncia: que Maria Preta é como se fosse da família. Em outras, que Maria Preta não é como se fosse da família, uma vez que não é da família, é apenas 'como se fosse '," (p.7)
Em resenha para o jornal Rascunho, em maio de 2007, Maurício Melo Júnior, analisando a impostura ostenta a pelos protagonistas de Jóias de família, observa:

Zulmira Ribeiro Tavares sabe que trabalhar com palavras exige silêncios. E é exatamente se valendo disso que constrói seu romance como uma pequena obra-prima. Diz tudo aquilo que quis dizer, mas, ao mesmo tempo, instiga a imaginação do leitor, o chama para uma parceria. O mundo de hipocrisia, mesmo metaforicamente descrito, está ali com todo sua intensidade. Conclusões, continuidade e similitudes que fiquem a cargo do leitor.

Testes
Assinale a afirmação incorreta sobre Jóias de família, de Zulmira Ribeiro Tavares:
A)    A narrativa é centrada na primeira pessoa, sob o prisma de Maria Bráulia.
B)    O romance exibe aspecto satírico expresso numa prosa racional e analítica.
C)    A modernidade do texto reside na ousadia da expressão e na liberdade da linguagem.
D)    A prosa é assinalada pela sutileza do humor e pela análise ferina das personagens.

2. O texto de Zulmira Ribeiro Tavares dramatiza as diferenças entre a nova sociedade, dita de massas, e o antigo mundo paulista das parentelas. A alternativa que apresenta personagens de Jóias de família exemplificando essa oposição é:
A) Julião x Jurema
B) D.Chiquinha Maria Altina
C) Munhoz x Marcel
D) Maria Bráulia x Benedita

3. As passagens de Jóias de família apresentam a temática da falsidade e/ou representação, EXCETO:
A) Ah, o veranico de maio. Maria Bráulia respira fundo aquele ar tingido de ouro, aquele verão fingido e perfeito, sem os excessos do verdadeiro.
B) Nunca teria podido imaginar que com o cabelo cortado à escovinha alguém tivesse percebido alguma coisa.
C) Disse que é muito comum casos assim com jóias de família. A montagem da jóia é boa, a imitação bem feita, quem não é especialista...
D) Seu rosto social continua firmemente afivelado ao natural e ela permanece deitada de costas numa cautela desnecessária para não manchar a fronha...
4. Em Jóias de família, NÃO constitui um objeto de simbolização expressiva:
A) o cisne de Murano
B) o rubi sangue-de-pombo
C) os óculos de aro dourado
D) o cabochão

5. Assinale a relação CORRETA entre o trecho e a respectiva personagem:
A)...é aquela negrinha sonsa que só porque desbotou um pouco pensa que já é branca → Benedita
B)...aparenta uns quinze anos a menos que Maria Bráulia e o seu pixaim alisado está todo grisalho → D.Chiquinha
C)...rainha Vitória da Inglaterra, a que cedera o seu prenome a um tão longo período da História → Maria Altina
D) Mas talvez a sua escaldante virilidade é que tornasse o Munhoz tão condescendente. (De fato, quem olhasse para o seu tipo de ruivo tostado pelo sol de Pirassununga tinha sempre a impressão de que ele estava a ponto de entrar em ebulição) → Mareei Armand
Questões discursivas
1. Há uma passagem em Jóias de família, em que o juiz Munhoz diz ao secretário: "Um bom advogado é como um bom tintureiro. Pinta qualquer lei com as cores de sua bandeira". Redija um texto, RELACIONANDO essa frase com o comportamento dos protagonistas do romance.
2. Com base no trecho abaixo, redija um texto, EXPLICANDO a linguagem de Jóias de família:
"À noite, durante o jantar, o Munhoz explicou-lhe tranqüilamente que o secretário também era fisioterapeuta e que ele, juiz, precisava de constantes exercícios relaxantes e ativadores da circulação, particularmente necessários com a vida sempre tão sedentária que levava, de tantas responsabilidades e com tão fortes tensões morais. Com o tempo ela foi compreendendo o sentido dessa e de outras cenas um tanto bizarras que às vezes ainda lhe ocorria presenciar (ou suspeitar); nada de grande vulto, uma preocupação desusada do secretário com a nuca do juiz, a sua mão que ali às vezes se detinha demoradamente pesquisando com a ponta dos dedos algum ponto enrijecido, pés que se embarafustam na jurisdição de outros por debaixo da mesa, coisas de pouca monta." (p.21)
Gabarito comentado
Questões objetivas
1. A → A narrativa é realizada na terceira pessoa.
2. D → Bráulia representa a sociedade patriarcal e Benedita, a sociedade de massas.
3. B → Nesse trecho, especificamente, não transparece o tema da representação.
4. C → Os óculos de Maria Preta não têm uma crucial importância simbólica no romance.
5. A → A única passagem que corresponde corretamente à respectiva personagem é essa opção, pois a letra b refere-se à Maria Preta, a letra c refere-se a Mareei e a letra d refere-se a um fazendeiro, amigo de infância de Munhoz.
Questões discursivas
1. As personagens de Jóias de família vivem de imposturas, fingimentos, hipocrisias, simulações. O título da obra remete às jóias falsas, símbolo que assinala a forma hipócrita com que Munhoz e Maria Bráulia ostentam um casamento de aparências. Assim como um advogado pode tingir a lei segundo os seus interesses, esses representantes da aristocracia paulistana decadente buscam simular, fingir e, como diz o próprio texto, inocular em si mesmos pequenas doses de ilusão.
2. A linguagem do romance é contida, racionalista, mas trazendo a marca da ironia. Ao colocar em cena a figura de Munhoz, que busca explicar sua relação com o secretário, o narrador evita explicitar a cena, mas sugere, nos parênteses inseridos, a suspeita da personagem, cuja ingenuidade aos poucos vai sendo desmanchada pela certeza do homossexualismo do marido. O termo "jurisdição" aplicado ao espaço que os pés do juiz ocupam sob a mesa é de ironia contundente.

Referências
CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário de símbolos. São Paulo: Moraes, 1984.
JÚNIOR, Maurício Meio. "Jóias de família". Jornal Rascunho, maio de 2007.
SCHWARTZ, Roberto. Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
TAVARES, Zulmira Ribeiro. Jóias de família. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.
TAVARES, Zulmira. O nome do bispo. São Paulo: Brasiliense, 1985.

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