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quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Contos - Machado de Assis - provão


O CONTISTA

Em termos de valor literário, o conto, no século XIX, atingiu seu ponto culminante com a obra de Machado de Assis. Alguns de seus contos podem ser colocados entre os melhores de toda a literatura em língua portuguesa e mesmo estrangeira.
Dotado de grande talento para a história curta, Machado de Assis escreveu inúmeros contos, muitos defesa espalhados pelas diversas revistas e jornais em que colaborou. Apesar de algumas concessões feita ao gosto do público a quem dirigia, grande parte de seus contos revela a preocupação em analisar o comportamento humano, procurando descobrir, por trás das ações, os mecanismos secretos e egoístas da alma humana.

A IGREJA DO DIABO

Capítulo I

Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.
— Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo. Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: — Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.

Capítulo II

Entre Deus e o Diabo

Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-se logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.
— Que me queres tu? perguntou este.
— Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os
Faustos do século e dos séculos.
— Explica-te.
— Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...
— Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.
— Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa idéia, não vos parece?
— Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor.
— Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.
— Vai.
— Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?
— Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja.
O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje de memória, qualquer coisa que, nesse breve instante de eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:
— Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura.

— Velho retórico! Murmurou o Senhor. — Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, — a indiferença, ao menos, — com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, — ou seja, roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda...
Vou a negócios mais altos...
Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica. Deus interrompeu o Diabo.
— Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?
— Já vos disse que não.
— Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: aágua e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?
— Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.
— Negas esta morte?
— Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...
— Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai, vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!
Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.

Capítulo III

A boa nova aos homens

Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.
— Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil e airoso.
Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...
Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada.
Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu..." O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos de Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de propriedades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento. As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs. Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: Muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica elegal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrado assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele. Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regime: "Leve a breca o próximo! Não há próximo!" A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: — Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.

Capítulo IV

Franjas e franjas

         A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo. Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros. A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas, socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meterse na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia que duvidar; o caso era verdadeiro. Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse-lhe: — Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.

                                     Análise

“Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, um certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja”. Seria “Escritura contra escritura”, breviário. Terei a “minha missa”. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez. Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Antes, porém, foi ao céu dar ciência do seu plano a Deus, e desafiá-lo. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa idéia, não vos parece? Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor. Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental. Depois de alguma conversa, em que tenta demonstrar que as virtudes não tinham razão de ser, o Diabo recebe a permissão de Deus: “Vai, vai, funda a tua igreja; convoca todos os homens; mas, vai, vai”.
O Diabo veio, e revolucionou o mundo. O certo era o contrário. Reabilitou a soberba, a preguiça, a soberba, a avareza. As turbas corriam atrás. Mas o Diabo começou a observar que muitos, às escondidas, iam praticar as virtudes. Indignou-se. Como “o fato se reproduzia cada vez mais, voltou ao céu, para indagar de Deus a causa do fenômeno.” Deus ouviu-o com infinita complacência; não interrompeu, não o repreendeu, não triunfou sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele e disse-lhe:- Que queres tu, meu pobre Diabo? (“...) É a eterna condição humana.”

HOMEM CÉLEBRE

“- Ah! O senhor é que é o Pestana? perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: - Desculpe meu modo, mas... é mesmo o senhor?” (pág. 42).
Isso aconteceu num sarau íntimo na casa de uma viúva, em novembro de 1875. Pestana era famoso compositor de polcas populares que faziam todo mundo dançar. Foi o que despertou o entusiasmo da mocinha, mas que só desgostava o compositor, pois seu sonho era fazer uma obra célebre como as dos grandes mestres. Pestana logo escapa dessa reunião e refugia-se no sossego de seu lar, onde tenta mais uma vez fazer uma obra de arte.
“Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano. Olhou para o retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata, sem saber de si, desvairado ou absorto, mas com grande perfeição. Repetiu a peça; depois parou alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janelas. Tornou ao piano; era a vez de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do mesmo modo, com a alma alhures. Haydn levou-o à meia-noite e à segunda xícara de café”. (p.44)
Mas quando tenta compor algo seu, original, artístico, nada consegue. Angustia-se o compositor. “Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?” (p. 45) Porém, quando senta para compor uma polca, ela vem fácil, sem qualquer esforço e, mal leva para o editor, a nova peça torna-se famosa e passa a ser tocada por todos, dando-lhe fama, celebridade.
O editor é quem determina os títulos das obras. Quando levou a primeira, Pestana tentou dar-lhe um nome poético como “Pingos de sol”, mas o editor disse que os nomes devem ser populares para ajudar a vender o produto como, por exemplo, “Candongas não fazem festa”. A polca tocada no sarau da viúva chamava-se “Não bula comigo, Nhonhô”. Uma das últimas foi batizada por “Senhora dona, guarde o seu balaio”. Essa, em oito dias ficou célebre. Inicialmente, como as anteriores, agradou ao autor, mas logo o aborrecia. Assim viveu o músico até casar e depois de casar com uma viúva de vinte e sete anos, boa cantora e física. Talvez o celibato fosse a causa de esterilidade. Agora iria engendrar uma grande quantidade de obras sérias e profundas. Com grande esforço e trabalho, compõe uma peça, que a mulher mal ouve e mostra que se trata de um noturno de Chopin. Pestana fica tão aborrecido que quase tenta o suicídio. Conformado, volta às polcas e publica mais duas, mas com pseudônimo. A mulher morre numa noite de natal, e sua dor torna-se maior, porque na vizinhança “havia um baile, em que se tocaram várias de suas melhores polcas”. (pág 49). Enterrada a esposa, o viúvo decide compor um Réquiem, que faria executar no primeiro aniversário da morte de Maria. Começou, mas nunca terminou. Depois de dois anos, o editor procurou-o e propôs um bom contrato para que voltasse a escrever polcas que vendessem bem. Já vinha com os primeiros títulos “Bravos à eleição direta!”, para comemorar a subida dos liberais ao poder. Assim foi, até 1885. As polcas deram-lhe o primeiro lugar entre os compositores populares, mas ele desejava o centésimo lugar, desde que fosse entre os eruditos. Foi quando adoeceu para morrer e recebeu a visita do editor que queria mais uma polca para a ocasião, a subida dos conservadores.
       “- Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais.
         “Foi à única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo”. (pág. 51)

Análise

·         A temática básica deste conto é a oposição entre vocação e ambição.
·         Sua personagem principal, Pestana, é um famoso compositor de polcas, um estilo bastante popular de música.
·         No entanto, seu grande sonho era produzir música erudita no nível dos grandes mestres, como Chopin, Mozart e Haydn.
·         Por mais que se esforçasse, só conseguia compor o gênero popular. ”Em meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e olhar para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando me quando ia ao piano e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum pensamento; mas o pensamento não aparecia e ele voltava a encostar-se à janela”.
·         Chega até a se casar com uma cantora lírica tísica, Maria, crendo que, convivendo com ela, finalmente teria a fatídica inspiração.
·         Esforço inútil. Por fim, ela morre e pensa em compor para ela, já que estava imbuído da dor da perda, um réquiem. Outro fracasso.
·         Espera conseguir inspiração para a missa de aniversário do falecimento, mas mais uma vez frustra-se.
·         É quando desiste e dedica-se às polcas.
·         Por fim adoece, não demorando muito para morrer em conseqüência de uma febre.
·         De acordo com o narrador, teve tempo para uma última piada. Seu editor vinha pedir uma polca em deferência à subida dos conservadores ao poder.
·         O compositor disse que a faria e ainda deixaria outra pronta, para quando subissem os liberais ao poder.
·         Há uma crítica que ainda é atual: o mercado está mais interessado em obras de qualidade fácil, que satisfazem de forma imediata e rasteira o gosto do público.
·         Sintomático disso é o fato de o editor já ter títulos prontos para obras que ainda nem existem, aproveitando-se dos fatos do momento, da moda. Além disso, há um conflito interessante entre o efêmero (polca) e o eterno (música erudita), que pode ser também visto como entre o baixo e o sublime.

Cantiga dos Esponsais

·         O narrador, dialogando com uma eventual leitora, pede que imagine a igreja do Carmo, em 1813, e se fixe em uma cabeça branca no meio de todas as outras que ali estão.
·         Este conto capta a essência dramática e lírica do destino.
·         Romão Pires é vítima do destino e do azar.
·         Também mostra grandioso na virtude com que aceita seu fim.
·         Trata-se de Romão Pires, um senhor de sessenta anos e que regia a missa. Romão é um homem triste, taciturno e calado, que encontra felicidade e prazer somente enquanto rege a missa, iluminando-se pela música e retornando à escuridão do seu silêncio assim que cessa á última nota.
·         Mestre Romão nutria um grande e forte desejo, nunca até então satisfeito, de ser compositor.
·         Sua vontade de criar era enorme e indizível.
·         Morava justamente aí a melancolia de Romão, na incapacidade de traduzir em notas aquilo que sentia, na carência de recursos que o impedia de transformar em belas composições toda a carga de sensações que o preenchia, mas que teimava em não sair.
·         Mas sua maior frustração é nunca ter conseguido concluir um canto esponsalício iniciado três dias após seu casamento em 1979.
·         Acordando com uma forte inspiração, Romão sentou-se e chegou a uma pequena sequência de notas, que parou em um ponto do qual ele não conseguia avançar.
·         Tentou depois inúmeras vezes até a morte da mulher.
·         Ficou somente a angústia de não ter conseguido traduzir em música felicidade que o dominou naquele princípio de casamento.
·         No dia seguinte à missa Mestre Romão ergueu-se com uma sensação ruim e mandou Pai José ao boticário para trazer lhe algum remédio.
·         Durante os cinco dias seguintes, Romão padeceu com dores e achaques e, após a recomendação do médico de que se distanciasse da música, por um tempo, decidi use por terminar o canto esponsalício abandonado.
·         Mandou que levassem o cravo para o quintal dos fundos para respirar melhor o ar e terminar a composição.
·         Na casa dos fundos, um casal se abraçava carinhosamente, e Mestre Romão, não conseguindo inspiração, para avançar na composição, resolveu fixar o olhar nos jovens e ver se inspiração lhe vinha.
·         Desesperado, Mestre Romão ergueu-se e rasgou a partitura, para logo depois ouvir a jovem vizinha cantarolar, após o lá no qual ele empacara, uma bela sequência musical, justamente o desfecho que ele procurou por anos, sem nunca ter encontrado.
·         Mchado de Assis, neste conto, parece defender o caráter  inexplicável da criação  artística  o fato dela às vezes delas surgir das formas mais inesperadas  e  inusitadas e nas pessoas menos aptas, enquanto outras , enquanto outras qualificadas e treinadas para tal, ardem e se consomem na angustiante da ideia perfeita , da canção perfeita, do texto magnífico, mas que nunca vem a lume.
·         Apesar da reconhecida capacidade musical de Mestre Romão, acompanhamos a sua angústia diante da incapacidade de criar suas próprias composições, sobretudo o canto esponsalício iniciado há tempos e nunca concluído. É irônico que ele seja magnificamente completado por uma jovem que não possui, ao menos o conto nos deixa essa ideia, nenhuma ligação profissional ou técnica com a música.
·         Outro ponto interessante aqui trabalhado é a dificuldade natural a maioria dos humanos em manifestar claramente suas sensações 

Aspectos Formais

Um narrador onisciente e intruso, dialogando com o leitor e opinando sobre a história, mostra-nos resumidamente a trajetória de vida de Mestre Romão.

Teoria do Medalhão

·         O conto é baseado em um diálogo envolvendo pai e filho. Praticamente sem ações e ocupando apenas uma hora de tempo cronológico, este texto prima pelas reflexões políticas e o jogo de influências que Machado também critica.
·         Após um jantar, o pai resolve ter uma conversa séria com o filho, recomendando-o, diante das inúmeras possibilidades de futuro existentes para ele, escolher e seguir a carreira de medalhão.
·         Ao sair o último convidado do jantar comemorativo dos 21 anos do filho, o pai o chama e lhe dá conselhos para o futuro.
·         Ser medalhão foi o sonho de minha mocidade. A seguir enumera as qualidades que compõem um medalhão: quarenta e cinco anos, frases feitas, pose, ar superior, etc.
·         O pai notava no moço as qualidades intrínsecas: “tu, meu filho, se não me engano, pareces dotado de perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício”.
·         O pai aconselha-o de diversas formas sobre como não ter idéias próprias, como passear sempre acompanhado, ir a livrarias apenas para contar piadas ou acontecimentos do dia, saber das idéias já pensadas na filosofia e sobre as ciências, mas impedir que algumas dessas idéias influenciem para reflexões ou mudar seu pensamento. É importante apenas ter fama de ser sábio, sem necessariamente o ser.
·         Enfim, ser um "medalhão" é ser uma figura considerada na cidade, respeitada, querida pela maioria das pessoas. Isto para ser lembrando durante a vida e depois da morte também.
·         Ser medalhão equivale a não ter idéias a não ser original, o medalhão é o que repete as opiniões alheias, o que não pensa, o que não faz o cérebro trabalhador.
·         O pai, então, procura ensinar ao filho a arte de pensar, de repetir o que foi dito e de não deixar levar por idéias originais.
·         A arte da mediocridade, o grande mérito dos medalhões consiste em não possuir idéias próprias e somente reproduzir pensamentos alheios; ter aversão às ironias, às sutilezas de raciocínio; adorar conversas amenas e vulgares sobre assuntos em que não modifiquem absolutamente nada a ordem das coisas.
·         O peso do texto concentra-se totalmente nas falas, nos pensamentos e nas reflexões.
·         Em nenhuma oportunidade, nota-se a presença do narrador, que simplesmente nos transcreve, sem interferência de nenhuma ordem, as falas das personagens, agindo como um mero observador.
·         O diálogo se dá entre onze horas e meia-noite do dia 05 de agosto de 1875.
·         Como ocorre em muitas narrativas machadianas, o peso do texto concentra-se tão totalmente nas falas, nos pensamentos e nas reflexões, que o espaço, ou mesmo a descrição dos personagens, torna-se secundários e, às vezes, desnecessário, como ocorre nesta “Teoria do Medalhão”.
·         Sabemos que um pai conversa com o filho, mas não temos detalhes fisionômicos deles e também que a conversa dá-se após um jantar, certamente em uma sala da casa.
·         No conto, "Teoria do Medalhão", Machado de Assis faz uma análise do comportamento de alguns membros da sociedade. Descreve-os de maneira extremamente clara, precisa, com um humor recatado, ironizando-os usando como pano de fundo uma conversa "inocente" como a de um pai com um filho.

Pai contra Mãe

O conto Pai contra Mãe é uma narrativa em terceira pessoa, que ocorre no Rio de Janeiro nos tempos do Império. Becos estreitos, sujeira, miséria fazem contraponto com a riqueza e a ostentação dos donos de escravos. Cândido Neves é um caçador de escravos fugitivos, profissão que lhe rende o sustento. Cândido casa-se com Clara e ambos sonham em ter um filho. Clara engravida, porém os escravos fugidios começam a escassear e Cândido fica séria dificuldade financeira; desesperado e sem saber o que fazer para sustentar o filho, o pai chega ao extremo de ter que optar por colocar o bebê na Roda dos Enjeitados, para a criança não morrer de fome. Cândido cogita mil saídas para ficar com o filho, não encontrando nenhuma, sai de casa com o filho nos braços para depositá-lo na Roda. No caminho vê uma escrava fugitiva, e entregando o menino para um senhor, sai em perseguição da negra. Pegando-a, ela lhe suplica liberdade e diz que está grávida e não quer ter um filho escravo. Nesse momento miséria e escravidão entram em luta. Cândido vence, e entrega a escrava ao seu dono. Vítima da violência implacável de seu senhor a escrava negra aborta a criança que esperava. Cândido recebe pela caça o dinheiro de que precisa para poder ficar com o filho e sustentá-lo. O conto termina com a frase de Cândido que tenta justificar sua tirania: Nem todas as crianças vingam... O autor mostra a miséria humana, através dos dramas paralelos de um pai contra mãe, lutando por duas vidas, onde o indivíduo é capaz de aplacar sua consciência, mesmo tendo cometido o maior dos crimes, justificando a troca de uma vida pela outra.

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